quarta-feira, 21 de maio de 2014 16 comentários

Despenhadeiro


“Escolher alguém é desvendar uma vida inteira.
E convidar a pessoa a desvendar a sua”
(Hanif Kureishi)


O vento põe calafrios
na alma das vidraças,
faz a ecometria do silêncio.
A pupila exercita a orgia
do ver olho no olho.
Você está mais linda do que de costume.

 
(Não há limite à beleza,
apenas proporções de olhares).

Seu colo é
berço e manjedoura
no desabrigo desta noite,
a diferença entre estar
presente e fazer companhia.

Quem nos dera fosse sempre assim,
essa quietude e contento. Há dias de liça,
rusgas nos pormenores da rotina,
azinhavre na ternura.
Já vivi isso antes e sei de toda a dor,
como tudo acaba.
Seus olhos craseados
ainda me fitam e contam-me
do contrário: toda a perfeição
de me saber adequado
e inequívoco aqui, ao seu lado.

Apesar dos avisos,
esqueço o que sei,
arrisco-me às consequências,
quebro os preceitos.

Minha cremnofobia que se dane,
quero é mais me atirar
nos braços desse precipício.


quarta-feira, 7 de maio de 2014 10 comentários

Nexo


É a memória que nos remata?

A interrogação foi proposta por ela
ao cuidar do tio com Alzheimer,
a rede de fusíveis sinápticos se apagando,
as pequenas cidades do cérebro recenseadas
e encontradas vazias.
Onde estão o roxo e o amarelo dos ipês,
agora que na abandonada praça da recordação
configura-se um sentar ausente?
Que livros e fotos são esses,
economicamente dispersos pela estante?
Quem é esse menino na parede
que insistem que seja eu,
eu que não o conheço?
Os cômodos da casa vão
evanescendo palmo a palmo.
O presente verga-se em si mesmo,
grotescamente, sem contextura e sem fim,
um detalhe a mais fenecendo a cada dia.
Será também o amor remendado de passado?
O que será de nós, as balizas desaparecidas?
Sentiremos a ausência eclodir, quase indolor,
cada vez mais o outro rosto fazendo menos sentido,
coisa nenhuma se construindo entre nós?
O amor é findo quando a memória se gasta?



 
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