quinta-feira, 29 de novembro de 2012 18 comentários

Sudário


Sigo um certo rastro de vida
que não me leva a lugar algum.
Aceito relações feitas de acaso
e circunstâncias: onde
acontece estar meu corpo.

Na verdade,
vivo para buscar
a parte rebelde de mim,
que descansa no sem fôlego
de uma noite sozinha,
vazia,
amarga de insônia.
“O meu ofício é ter alma”.

Mas ainda me desconheço:
entre o que sou e eu
existe um hiato,
virgem como uma dançarina
sem coreografia.


segunda-feira, 19 de novembro de 2012 12 comentários

Em surdina


Estou que não me sei. 
Desiludido dos sistemas 
e das superstições, fecho-me 
em copas. Esforço inútil: 
nenhuma fuga é possível. 
A vida é, 
inexoravelmente. 
Nela adolesço 
o estreito-pouco do meu corpo, 
querendo sempre mais 
- como Cecília – 
do que vem 
nos milagres.

terça-feira, 13 de novembro de 2012 12 comentários

Prestidigitação


As palavras não se comportam, 
desproporcionam a vontade de escrever,
atormentam a inspiração.
Nada mais natural que se desprendam de mim,
como casca de árvore, como suor,
como pele de áspide. No entanto,
coisa nenhuma se expressa, elas continuam aqui,
recolhidas nesse interstício,
presas no atrito da imprecisão.
E qual o motivo, meu Deus?
Afora as óbvias,
justificativas assim precisas não há.
A autocrítica intransigente,
certa desambição de se fazer lido,
a persistente sensação de que nem
se é tão imperioso colocar minha alma no papel.
Novo tentame. Fixo-me na música das esferas,
conto meu fôlego daqui ao Zen,
busco resignação nos confins da sofreguidão.
Como um regente vacilante, ergo minha batuta
contra a fúria dos constrangimentos da eloquência
: minha escrita torna-se o contraveneno
da mordida do embotamento,
truque de dedos,
bruxedo de vocábulos.



domingo, 4 de novembro de 2012 10 comentários

Itinerários de Sísifo


Conforme nos rendemos 
às estrições desse tempo,

às agendas atulhadas
de coisas por fazer,
aos canhotos dos cheques
marcando
impiedosamente

os valores devidos
ao próximo mês,

tornamo-nos um
borrão indistinto

(desatino dos astrolábios)

na ginástica dadaísta das ruas,
onde somos tão só
a roda de um

invisível moinho de galés.


 
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